Primeira Memória: Como nasceu o espetáculo 24A74 – Salgueiro Maia
Há dez anos, em 2014, quando disse “A minha mãe chamava-se Francisca” pela primeira vez em frente ao público, fez-se um silêncio sepulcral. O espetáculo foi criado para corresponder às Comemorações Populares do 25 de abril em Viana do Castelo. Comecei a pesquisar sobre Salgueiro Maia. Assim que comecei a minha pesquisa, fiquei a saber da existência de um livro de memórias de Salgueiro Maia escrito por ele. Mas constato com perplexidade que esta obra, editada pelas edições do jornal de noticias em 1997, se encontrava esgotada. Não deixo de achar irónico que todos os anos, a cada dia 25 de abril, por todo o país se vá como que tirar o santinho do salgueiro maia, na televisão passam os documentários da praxe alusivos ao movimento dos militares que organizou a revolta, as notícias, os comentários dos comentadores nacionais, a sessão solene da data que religiosamente decorre na assembleia da república e... Esse nosso herói consensual, espécie de “Che” Guevara português escreveu um livro com as suas memórias e no ano dos quarenta anos da revolução a edição está esgotada há mais de uma década e... nunca foi reeditada! Procuro em bibliotecas públicas, contacto pessoas que conheço... ninguém tem e a maior parte desconhece por completo a existência de tal livro. Já de forma obstinada recorro à única forma restante de procura e recorro à economia paralela e numa plataforma de vendas encontro ao fim de uns dias um exemplar à venda. Encomendo-o imediatamente. Enquanto espero, continuo a pesquisar, sobretudo na internet e vejo até à exaustão as imagens fotográficas e de vídeo existentes, incluindo a sua última entrevista dada a um canal de televisão, em 1992, pouco tempo antes de morrer de cancro, com apenas 47 anos de idade. Entretanto, recebo finalmente o tão esperado livro: Capitão de Abril – Crónicas da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril. Abri a capa e li:
«Dedico estas linhas àqueles que, sempre generosos, sofreram na carne e no espírito as consequências da luta pela liberdade. Desejo que sirva de aviso àqueles que, nascendo em liberdade, não lhe sentem a falta.»
Repito:
«Dedico estas linhas àqueles que, sempre generosos, sofreram na carne e no espírito as consequências da luta pela liberdade. Desejo que sirva de aviso àqueles que, nascendo em liberdade, não lhe sentem a falta.»
Li o livro de um fôlego nesse mesmo dia. Tinha a sensação que não podia cortar nada, nem adaptar. Uma urgência em transmitir aquelas palavras. Surgiu então a possibilidade de fazermos o espetáculo no antigo paiol de munições do forte de Santiago da Barra, em Viana do Castelo. Situado dentro das muralhas do forte, que funcionou como quartel militar até 1977, existiam casernas, uma capela e um paiol, espécie de capela mais pequena, toda murada em volta, com um fosso a toda a volta e composta por paredes de granito com um metro de espessura e um teto abobadado também em granito! Um espaço espetacular apesar de muito pequeno. Calculámos que caberiam lá umas 50 pessoas e que haveria um espaço para um ator com três por três metros. O Porfírio Barbosa que era o técnico da companhia tratou da luz e do som: cabia uma torre no centro com dois projetos pendurados e duas colunas de som que tinham que ficar atrás do público. À frente, 40 cadeiras e o espaço de cena. Tratámos de arranjar uma farda de soldado português para mim. Entretanto peço ao Adriel Filipe para fazer um cartaz para a peça. Digo apenas que deve ter uma imagem de Salgueiro Maia, com umas letras em fundo manuscritas como se fossem as memórias dele, o título da peça e o costumeiro DHL: data, hora, local. Chegou o dia da estreia e o que recordo, depois de estar vestido e pronto era que tínhamos que deixar o público entrar e depois era preciso apagar a luz e eu entrar às escuras pelo meio do público até à minha posição inicial, pois não havia bastidores, apenas granito. Numa pilha de nervos, sem jantar, chega a hora em que me dizem que não posso andar mais de um lado para o outro a ensaiar porque o público está pronto para entrar. Saio e venho para trás do paiol onde bebo água e fumo um último cigarro com o texto na mão a rever e rever e com a sensação que não tenho aquilo tudo seguro e que me vou esquecer a qualquer momento. A minha colega e companheira Elisabete Pinto está comigo e tenta desejar a costumeira “muita merda” e transmitir confiança e beijo-a e digo-lhe para se por a andar dali, que vá receber as pessoas, que se sentem, que vamos lá, que pôrra, já só quero começar... Finalmente, o Porfírio vem cá fora e diz-me: vamos lá, senhor? Está tudo. Espera que eu apague a luz para entrares. Muita merda, menino! Entro. A luz apaga. Coloco-me. A luz de cena acende e felizmente quase me cega para que não tenha que ver os olhos das quarenta pessoas que agora sinto ali à frente dos meus joelhos, a respirarem comigo. Começo. Quando o espetáculo termina e se faz escuro, há aplausos, agradeço, o público levanta-se, chamo os meus colegas para virem agradecer comigo, agradecemos juntos, eles saem e faço sinal às pessoas que quero falar. Todos se sentam e faço um agradecimento a todos os envolvidos e preparo-me então para sair enquanto o público aplaude. É neste momento que vejo que alguém levantou a mão indicando querer falar. Pensei: bem, não faltava mais nada! – Vou fazer que não vi e saio... Só que, a única entrada e saída para a zona de cena é passando pelo público. Ou seja, não ia dar para fingir não ter visto. Literalmente encurralado, e com receio digo ao público que está ali um senhor de braço no ar e que, se não se importam, se não se importa, se quer falar... O Porfírio dá luz de público e é então que vejo ser o António Basto, antigo presidente de junta de uma das freguesias da cidade, que nos dá os parabéns pelo espetáculo e que queria partilhar que fazia naquele dia precisamente 44 anos que ele saiu daquele mesmo forte, enquanto soldado, mobilizado para a guerra em Angola, e que queria partilhar a emoção que estava a sentir naquele momento. Está isto a acontecer e à minha esquerda outra pessoa se levanta de mão no ar. E pensei: estou tramado! Pois se dei a palavra a um, este agora também vai ter que falar... Também o conheço. É o senhor Manuel Alberto Silva, nosso espetador habitual e muito crítico do nosso trabalho... Diz-nos que também está emocionado, que também foi mobilizado contra a sua vontade para a guerra, que esteve em Moçambique e que ao assistir ao espetáculo reviveu, através das memórias de Salgueiro Maia, o inferno que era então vivido pelos jovens portugueses. Logo a seguir, já sem pedir para falar, uma senhora disse que aquela peça de facto era extraordinária porque fazia um retrato fiel do que tinha sido o drama da guerra colonial e da sociedade portuguesa que era cinzenta e opressiva, na qual não se podia falar. Assim que pude, voltei a agradecer a todos e saí finalmente. Foi desta forma imprevista que o espetáculo passou a contemplar sempre uma conversa imediatamente após o final. Nos dias seguintes, assim que terminava e dizia que se seguia um momento de conversa, invariavelmente, havia pessoas a querer falar. Particularmente, antigos combatentes. Continuamos.
Pode ajudar-me? Se eu me enganar ou não souber o texto, ajude-me, por favor. Obrigado.
Segunda Memória: A ida a Castelo de Vide
Sede também foi o que passámos quando fomos a Castelo de Vide. Em 2015, fomos convidados para fazer duas representações: uma em Elvas e outra em Portalegre. Na viagem entre ambas, disse ao Porfírio, técnico que me acompanhava, que tínhamos que aproveitar e fazer um desvio para ir à terra do Salgueiro Maia. Lá fomos e chegámos a meio da manhã. Estava um calor abrasador. As ruas da vila desertas por isso mesmo. Ponho no GPS do telefone a morada: Rua de Santo Amaro, número 15. Lá fomos, debaixo de 40 graus à sombra. Quando encontramos a casa, na pequena rua, estreita e empedrada, sinto um murro no estômago: o pequeno prédio, com portas que têm por cima os números 15 e 17, está abandonado. Devoluto. Fechado. Com teias de aranha nas janelas. E se dúvidas houvesse, na janela do 1º andar, onde talvez tenha nascido o nosso homem, uma placa de uma imobiliária diz que se vende. Não há nada que diga que casa é aquela. Peço ao Porfírio para me tirar uma fotografia. Tiro-lhe também uma a ele. Olho para as fotos. Banal. Eu e ele em frente a uma porta com o número 17. Digo então para irmos ao cemitério da vila porque sabemos que está ali sepultado e a seguir seguirmos viagem, até porque estamos com o tempo contado. Entramos no cemitério, procuramos e vejo uma lápide que reconheço de uma fotografia que já tinha visto num livro. Mas quando nos aproximámos, novo soco no estômago. A campa está desmontada, com as lages, as placas e um vaso com flores já secas colocadas a um canto. Semanas antes, eu tinha lido que por necessidade de ser feita uma recolha de ADN de Salgueiro Maia, um tribunal tinha ordenado a exumação dos seus restos mortais. Grande pontaria a minha, ir a Castelo de Vide naquele momento. Mas não sei o que me deixou mais triste: se a campa com ar de desrespeito, se a casa de nascença completamente esquecida na vila, para venda. Seguimos viagem. Enquanto conduzo, penso para mim mesmo que o nosso herói teve uma relação complicada com a sorte que o destino lhe deu. Da nascença até depois da morte, parece que os astros não deram descanso a Salgueiro Maia. A não ser na guerra, onde aí sim, teve a sorte de conseguir sobreviver.
Terceira Memória: A ida a Almada
Em 2016, embarcámos também para Almada, onde fizemos o espetáculo na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite. Por toda a história da Companhia de Teatro de Almada, que nos convidara, e pela tradição do público de teatro de Almada, sentimos uma responsabilidade acrescida. Tínhamos que fazer duas representações. Para ambas, sabíamos que a lotação já estava esgotada. Estava nervoso. Até porque naquele momento, a companhia do Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana estava numa trajetória de recuperação económica e também de renovação artística, que tinha começado em 2013. Por isso, era muito importante estarmos ali. Para quem não sabe, Almada tem o público de teatro mais entusiasta e mais informado do nosso país. Ali vi e ouvi certa vez, na apresentação da programação de uma das edições do Festival de Teatro de Almada, dois idosos a discutirem qual era o nome da peça em que tinham visto ali naquele palco o ator Rui Mendes há muitos anos atrás. Falavam com o mesmo entusiasmo de quem fala de uma final de uma competição de futebol. Finalmente, depois de várias tentativas, um deles disse: Era “O Círculo de Giz Caucasiano” do Brecht, não era? E o outro responde: “Era, era! Isso mesmo. Eh, pá, aquilo é que foi um grande espetáculo!”. Lembro-me de ter pensado que uma tal conversa, em Portugal, entre dois espetadores anónimos, só podia acontecer em Almada. E ali estávamos nós, perante aquele público, para fazermos o nosso espetáculo sobre Salgueiro Maia, a Guerra Colonial e o 25 de Abril, seguido de uma conversa! O Porfírio, que fazia a operação de luz e som do espetáculo, e que tem muitos mais anos de teatro que eu, também estava nervoso. Pelas mesmas razões mas também porque da última vez que a Companhia tinha ido àquele teatro fazer um espetáculo, foi “arrasada” pela crítica. De forma inocente mas que me pôs mesmo numa pilha de nervos, durante a montagem e ensaios do espetáculo, o Porfírio vai-me dizendo: “Ricardo, tu vê lá. Olha que da última vez que vim aqui passei uma vergonha de todo o tamanho... Sabes que este pessoal de Almada é lixado... Não aplaudem qualquer coisa...”. Quando começou o espetáculo, estava confiante apesar de muito ansioso. No fim, toda a gente aplaude. A maior parte de pé. Olho para o Porfírio e vejo que lhe escorrem lágrimas pela cara enquanto também aplaude. Ato contínuo, segue-se a conversa e a certa altura, um senhor pergunta se a RTP2 nunca nos contactou para filmar aquela peça, porque ele entende que a mesma não só merece como seria verdadeiro serviço público emitir a peça na televisão para que um maior número de pessoas, sobretudo os jovens, a pudessem ver. Respondo que não, que também gostaríamos, claro, que seria uma honra mas não, não fomos contactados e agradeço as palavras. O senhor acrescenta: “Então, eu proponho que aqui, entre nós, possamos organizar uma recolha de assinaturas nesse sentido, começando por quem está aqui e continuando depois, para mais pessoas, para enviarmos para a televisão. Que dizem?” Fico profundamente comovido com aquilo mas agradeço e respondo que, sem prejuízo dessas e de outras iniciativas, temos ainda que ouvir quem quiser falar naquela conversa. No dia seguinte repetimos o espetáculo, à tarde, arrancando imediatamente a seguir ao mesmo de regresso a Viana. Vimos realmente contentes, eu e o Porfírio, e ansiosos, como sempre que regressamos de fazer um espetáculo que corre bem, de podermos partilhar essa experiência com os colegas da Companhia. Venho a conduzir, contente, orgulhoso do que fizemos e do que estamos a fazer com este espetáculo e com a Companhia. A meio da viagem, o Porfírio atende uma chamada. Desliga e diz que era a Elisabete, minha esposa, que ligou para ele, porque eu estava a conduzir e que pede para eu ligar quando pararmos. Até à área de serviço da Mealhada, continuo a papaguear com vaidade sobre o sucesso que tivemos em Almada. Quando paramos, ligo e a minha esposa diz-me que a minha avó Maria morreu. Durante o resto da viagem, ao longo da auto-estrada, partilho com o Porfírio que apesar do que estou a sentir, conforta-me saber que faleceu durante o sono. E partilho com o meu colega em jeito de homenagem, e porque preciso de não chorar ali, que a minha avó, Maria da Arrebita de alcunha, analfabeta, e que viveu 93 anos, a maior parte dos quais antes do 25 de Abril, me dizia sobre o facto de eu fazer teatro profissionalmente: “Tu és quilhado! Era isso que tu querias e conseguiste!”.
Quarta Memória: A ida a Beja
Por falar em sorte, ou acaso, em Beja, também em 2016, fizemos duas representações do espetáculo para públicos organizados. Uma de manhã, para alunos do 9º ano. E outra à tarde para um grupo de cerca de 20 idosos. Depois do espetáculo, inicio a conversa com os estudantes e a primeira pergunta é de uma aluna, dos seus 14 anos de idade, que me olha com ar de quem está um pouco confusa e diz: “o senhor esteve mesmo na guerra?”. Ao que eu respondo: “Não, eu não estive na guerra, felizmente. Eu sou um ator, e estou vestido de soldado porque estive a fazer de conta que era o Salgueiro Maia. Ele é que esteve na guerra e depois no 25 de Abril.” – Mas, mais perturbadora que a ideia daquela jovem não ter percebido nada do que eu estive para ali a fazer, é a constatação que ela, tal como muitos outros jovens, porventura, não sabe nem quando, nem onde, nem o que foi a Guerra Colonial, nem como se vivia em Portugal antes do 25 de Abril. Já o espetáculo da tarde foi único. Mesmo único. Felizmente! Uma plateia de idosos de um lar. A dado momento, algures entre a Guiné e o regresso de Salgueiro Maia a Lisboa, ouve-se um barulho na plateia seguido de vozes que dizem que ele caiu e segurem aqui, ai meu Deus, numa agitação que não vejo totalmente por causa das luzes mas percebo que aconteceu um acidente. Hesito mas, pela primeira em 20 anos de teatro, tomo a decisão de parar um espetáculo e digo ao público que vamos interromper e peço ao Porfírio para subir a luz. Um senhor desfaleceu e caiu cadeira abaixo. Ao seu lado, um outro senhor tenta segurá-lo. As duas técnicas do lar acodem. Eu tento acalmar as senhoras na plateia, digo para darem espaço, o senhor sentiu-se mal, vamos ter calma. A única pessoa para além de um técnico da casa que saiu para chamar uma ambulância é o Porfírio que acode também ao senhor, que não está insconsciente mas pouco responsivo. Vai balbuciando, tentando falar, enquanto lhe dizem para não se esforçar, que já vem aí ajuda. Alguém diz para o ajudarem a levantar. O que o Porfírio faz com ajuda de uma das técnicas do lar. Enquanto tentam levar o senhor para o átrio, este, que é bem alto e maior que o Porfírio diz que: “Eu estive com ele!” e desmaia mesmo, só parando no chão porque é grande demais para a técnica do lar e para o Porfírio o segurarem. Mais aflição das senhoras. O homem está agora inconsciente e deitado no átrio. Passam alguns minutos que pareceram horas e o técnico da casa chega com os bombeiros que prestam os primeiros socorros e levam o senhor numa maca. O Porfírio vem ter comigo e pergunta-me: “E agora? Continuamos?”. Respondo que não e que não consigo continuar sem saber se o homem está bem, até porque e se continuamos e o senhor morre? Concordamos que o melhor, até pelo ambiente, é dizer que o espetáculo estava perto do fim e explicar o que é que faltava, e tentar terminar aquilo da melhor forma possível. É o que faço, conto que estavamos quase a chegar ao relato da marcha para o Largo do Carmo e que a seguir haveria uma conversa mas que dadas as circunstâncias passávamos já à conversa, esperando que esteja tudo bem com o senhor. O outro senhor que estava ao lado daquele que se sentiu mal, diz então: “Ele estava sempre a dizer para mim que estava a ver, que ele esteve lá, com ele. Porque ele conheceu o Salgueiro Maia na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.” Fico a sentir-me culpado e emocionado ao mesmo tempo. Estou sem jeito enquanto as pessoas comentam que umas sabiam, outras não, e o senhor continua: “Eu também estava aqui, sabe... Eu também estive nos Comandos e, em 1968, a Companhia a que eu pertencia foi render essa companhia que o senhor falou aí, “Os Fantasmas”, 9º Companhia de Comandos. Eles tinham vindo embora quando nós chegámos a Mueda, em Moçambique. Mas não sabia que o capitão deles era o Salgueiro Maia. Por isso também estava aqui, assim... Mas ele, então, ele estava ao meu lado a dizer que o conheceu, que esteve com ele em Santarém e de repente, caiu. Estou a tentar assimilar o que aconteceu e está a acontecer e penso em quais são as probabilidades de em Beja, para uma plateia de 20 idosos que estão num lar e que naquele dia alguém decidiu por eles que iam ao teatro, estarem apenas dois homens e um ter conhecido pessoalmente Salgueiro Maia em Santarém e outro ter pertencido à Companhia que rendeu a de Salgueiro. Posto isto, pergunto se alguma das senhoras quer dizer alguma coisa. Não esperava o que quatro ou cinco senhoras partilharam então. Nas povoações dispersas do Alentejo, pequenas aldeias separadas por alguns quilómetros, o correio chegava primeiro às povoações maiores. Contam-me então que nos anos da Guerra Colonial, quando o carteiro chegava a determinada localidade e trazia telegramas que informavam que um militar tinha morrido na guerra, nessa localidade tocava o sino da igreja ou capela a rebate, que era ouvido a quilómetros de distância. Só que o carteiro só no dia seguinte iria percorrer todas as povoações da zona. As senhoras contaram que quando assim acontecia, nessas noites, se ouvia o choro e os gritos e promessas que das mulheres que sem dormir, não aguentavam a ansiedade de estar à espera de saber se tinha sido o seu familiar que tinha morrido. Eram mães, irmãs, filhas, namoradas, esposas. Choravam por um filho, um pai, um irmão, um namorado, um noivo, um marido. Que morrera.
Quinta Memória: A ida ao Brasil
Em 2017, a certa altura recebemos um telefonema de um produtor no Brasil, que estava a organizar um festival de teatro lusófono na cidade de São Paulo e que diz que uma das companhias contratadas não podia ir e pergunta se nós podemos. Ficou interessado no espetáculo até porque é um pequeno formato, e já não havia tempo para transportar cenários, pergunta quais são as condições. Quem está ao telefone é a Elisabete e estão mais colegas na sala quando eu entro, muito atarefado não me já porquê e ela só me diz: “olha, está fulano do festival tal e tal e pergunta se podemos ir fazer o Salgueiro Maia ao Brasil.” Respondo a achar aquilo demasiado repentino: “Quando?” – “Para a semana!” responde ela. E eu: “Oh, então era verdade?” - Por acaso na semana seguinte poderíamos mas a questão não era essa, mas aquilo tudo. “Claro que podemos. Vou eu, o Porfírio e o Adriel, levamos a farda e os livros (o cenário são apenas 5 livros) nas malas e já está! A sério...!” - E saio dali, irritado, porque enquanto estou eu assoberbado já não sei com quê, a equipa está para ali “na palheta” com um produtor qualquer e, como acontece muitas vezes com muitas das hipóteses de digressão de espetáculos, muitas vezes acabam por não se concretizar, ou por questões de dinheiro ou de alterações nas programações ou então são só contactos para recolher hipóteses. Mais tarde ainda troço dos colegas quando me dizem que o produtor pediu mais um dia para confirmar. Tratava-se de em cinco dias fazer duas apresentações em São Paulo, num prestigiado teatro, por um cachê muito bom, com todas as despesas pagas. Não quero crer na sorte, e no acaso destas coisas, quando a Elisabete, dois dias depois, nos diz: façam as malas. Vamos ao Brasil! A primeira internacionalização da Companhia fora da Europa é feita com “o salgueirito” como costumo chamar ao monólogo. Tudo porque, desde 2014, continua a ser aquele espetáculo com um ator vestido de militar e 5 livros feitos a partir de antigas páginas amarelas, que foi criado só para comemorar os 40 anos do 25 de Abril, num espaço não convencional como o antigo paiol de munições do Forte de Santiago da Barra de Viana do Castelo e que se transformou num espetáculo com uma conversa no final. E que, apesar disso, insiste em ter uma vida própria, prestando-se a percorrer os concelhos do Alto Minho e as cidades e vilas de dos quatro cantos do país, assim como várias cidades em Espanha. No Brasil, três peripécias se destacaram: no espetáculo, eu usava uma réplica de uma pistola à cintura num coldre. Decidimos não a levar para não termos problemas no aeroporto. “Compramos lá uma no chinês depois!” – Está bem. No Brasil, qualquer réplica de arma de fogo é proibida. Não existem. Nem pistolas de água sequer! No dia do espetáculo passámos seis horas a tentar comprar uma. Num armazém de brinquedos responderam-me que no Brasil era mais fácil comprar uma arma verdadeira que uma de brincar. Finalmente, encontramos uma pistola alusiva ao filme Pirata das Caraíbas, a coronha é arredondada, à século XVIII mas achámos que serve. Partimos o brinquedo a meio e o Porfírio pintou o pedaço de coronha de preto (era castanha, a imitar madeira) e colámos no coldre, visível, como se tivesse lá uma pistola. Estava também com receio da conversa. Que interesse é que os brasileiros poderiam ter na nossa peça, sobre a Guerra Colonial e o 25 de Abril. Para minha surpresa, tinham curiosidade. Sobretudo num aspeto que foi perguntado nas duas conversas: de onde surgiram os cravos, que se puseram nas espigardas e que deram o nome à revolução? Finalmente, entre os dois dias de espetáculo, fomos à Universidade de São Paulo assistir à defesa de uma monografia de licenciatura em animação teatral de uma aluna que um ano antes, tinha estado em Viana a fazer uma pesquisa sobre o Auto de Floripes, que todos os anos é apresentado na freguesia das Neves. A Bárbara Martins esteve no Teatro Municipal Sá de Miranda e falou connosco a propósito de uma versão do Auto de Floripes feita por nós. Qual era a probabilidade de um ano depois, estarmos em São Paulo, de onde ela era e estudava, nos dias que coincidiam com a sua apresentação pública? Os seus professores ficaram impressionados quando entrámos e dissemos que tínhamos vindo propositadamente de Portugal para assistir! Desfeita a brincadeira, aproveitámos para convidar todos os presentes para irem ver o espetáculo, o que alguns, incluindo a Bárbara, fizeram.
Sexta Memória: A ida ao Teatro da Trindade
A certa altura do ano de 2017, estávamos no Teatro da Trindade, em Lisboa, para fazermos um outro espetáculo, chamado O Mundo À Minha Procura, sobre a vida e obra do escritor Ruben Andresen Leitão. Foi um processo muito difícil e quase não conseguíamos fazer o espetáculo porque tivemos que adaptar várias coisas em cima da hora. Uma experiência péssima que ainda culminou com uma assistência de pouco mais de 30 pessoas tão famoso, bonito e com tantos lugares. Chegámos aos camarins depois do espetáculo e estávamos já a arrumar quando me dizem que na porta de serviço está uma pessoa que quer falar comigo. Estranho. Penso que depois do pesadelo que tinham sido os últimos dois dias em Lisboa, só faltava alguém ter detestado tanto o espetáculo, que quer reclamar pessoalmente. Na portaria está um homem que não conhecido com um envelope na mão. Diz-me que veio assistir ao espetáculo e que gostou, parabéns mas que nãop é por isso que está ali. Que não me devo lembrar dele mas que uns anos, em Almada, ele assistiu ao monólogo sobre Salgueiro Maia e que na sequência disso tomou a iniciativa de escrever para o Teatro Sá da Bandeira, de Santarém, a falar da peça e a recomendar que a mesma pudesse ser programada naquela cidade, onde Salgueiro Maia viveu e de resto, de onde saiu a coluna militar que comandou na madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974. Já agora, por isso o título 24A74 e não 25. Porque tudo começou naquela noite de 24 de Abril, às 23h00, com a emissão na Rádio Comercial da senha-canção Quis Saber Quem Sou de Paulo de Carvalho. O senhor diz que passado umas semanas recebeu a resposta do programador do teatro de Santarém a dar conta que já tinham a programação fechada para todo o ano. Ele respondeu que compreende a situação mas que insiste que, dada a atualidade da proposta, a “Vocelência” que dirigia aquele teatro podia desde aquele momento envidar esforços no sentido de programar o espetáculo para o ano seguinte. Disse-me então que desde aí não voltou a ter resposta. E que tinha imprimido os emails em papel, que estavam naquele envelope, que agora me entregava, para eu poder fazer o que achasse por bem a partir dali, pois ele já tinha feito o que podia, enquanto mero espetador de teatro. Ficava ali a prova e o seu testemunho dos esforços que fez em tentar ajudar a que mais pessoas pessoas vissem o espetáculo. Completamente surpreendido, só consigo agradecer e pegar no envelope. Despedimo-nos e digo: “Espere! O senhor foi quem durante a conversa em Almada, sugeriu que se fizesse um abaixo-assinado para a RTP, não foi?”. – “Não. Por acaso não. Não fui eu. E quando eu vi, não me lembro de isso ter sido falado na conversa.” Despeço-me e agradeço mais uma vez. Partilho com os meus colegas o que se passou e mostro-lhes os emails, que nos deixam a todos, honrados. E com uma certa vontade de telefonar para Santarém.
Sétima Memória: O regresso a Viana
Em 2018, por ocasião de mais umas comemorações do 25 de Abril em Viana do Castelo, decidimos voltar a fazer o monólogo em Viana. Durante cinco anos, muitas pessoas dos nossos públicos habituais, perguntaram-nos quando voltávamos a fazer porque muita gente não tinha visto, que o espetáculo era intemporal, que era importante, sobretudo para os jovens. Uns meses antes, quando começámos a preparar a reposição, soubemos que o antigo paiol onde tínhamos feito o espetáculo servia agora de armazém de comida, pelo que não era possível fazer lá. Pensando aonde o fazer, a certa altura fui à Praça 9 de Abril, em Viana onde, no centro do jardim está um monumento aos combatentes portugueses da Grande Guerra, a primeira. Consta aí uma placa com os nomes dos naturais do Concelho de Viana do Castelo que lá morreram. Em frente, existe o edifício do antigo quartel do Batalhão de Caçadores 9, onde hoje funciona uma residência de estudantes e respetivos serviços, assim como um centro cultural académico. Já antes tinha visitado o espaço da galeria mas era insuficiente para fazer o espetáculo. Estou por isso ali sentado, junto ao monumento e penso que até poderia fazer ali, ao ar livre e começo a pensar no número de cadeiras que se conseguiriam colocar. Mas hesito. Enquanto fumo um cigarro reparo numa pequena placa que está colocada de forma discreta numa das faces do monumento. Aproximo-me e leio: Homenagem da Câmara Municipal de Viana do Castelo aos Militares Vianenses que tombaram na Guerra Colonial. Sinto um frémito que me faz ler a lista de cerca de duas dezenas de nomes com avidez. Está lá. Isaías Alves Pereira Lopes. Soldado. Que morreu em Moçambique, a 11 de março de 1974, pouco mais de um mês antes do 25 de Abril, com 19 anos de idade. Era o filho de Maria Alves Pereira Lopes. A Maria da Arrebita, minha avó. O único irmão da minha mãe. O tio que nunca conheci e em cuja última fotografia parece mesmo um miúdo. Penso que já encontrei o local para o espetáculo e que depois da minha descoberta, que inclui o facto, difícil de aceitar, que ninguém da minha família, sabia que o nome do Tio Isaías constava numa placa que está na Praça do BC-9 em Viana, tem mesmo que ser ali. Programámos duas representações. Para o caso de chuva, conseguimos autorização para utilizar um espaço do BC-9 que, ainda que pequeno, dá para fazer o espetáculo, caso seja necessário. Nem de propósito, na véspera, chove torrencialmente, pelo que tomamos a decisão de fazer no interior. No final do espetáculo do segundo dia, a 28 de abril, quando o público aplaude, a minha filha Alice, então com 5 anos, caminha na minha direção com um ramo de 39 cravos. Fico surpreendido pois quando olho, o que vejo é um ramo de cravos enorme do qual saem as duas perninhas mais fofas que já vi a caminharem na minha direção. Tinha feito naquele dia 39 anos e tive a melhor prenda possível: o abraço da minha filha quando lhe pego ao colo, apertando-me o pescoço e os cravos ao mesmo tempo que me dá um beijinho. Chama-se Alice. Tenho outra filha, do coração, chamada Margarida, que tem hoje 21 anos. Também estava a ver o espetáculo. Na conversa, a seguir, partilho com o público a dedicatória que também faço naquele dia ao Soldado Isaías Alves Pereira Lopes, meu tio, que como tantos jovens do seu tempo, foi obrigado a ir para a Guerra Colonial. Que o matou.
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