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Salgueiro Maia: cartografia de um monólogo

(Chave de transmissão cartográfica)

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Este texto, que acabei de dizer, foi composto pelo público que assistiu à representação anterior a esta, no caso (lugar da anterior representação). Essas pessoas quiseram que vos transmitisse as suas palavras. 

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Olá.

Obrigado pela vossa presença.

Bem-vindos ao teatro.

Chamo-me Ricardo Simões e esta é a cartografia de um monólogo.

A estória de um espetáculo e das pessoas que o fizeram e viram. E das pessoas que o continuam a fazer e a ver.

Que não começou hoje, aqui. E que não acaba aqui, hoje.

Que começou há dez anos. E que vai continuar, até um momento e um lugar que ainda não é possível determinar. 

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Se consultarmos as definições de cartografia, e existem muitas, podemos ver que cartografia pode ser um mapa. E o que é um mapa? É um registo. E o que é um registo? Para que serve? Para fixar a memória. Para vencer o tempo, através da possibilidade de voltar a aceder à informação registada.

De todas as definições de cartografia, a que me interessa mais é aquela que diz que cartografia é o processo de pesquisa através do qual quem procura e quem é procurado dá origem a novo conhecimento e o projeta no futuro.

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Durante o tempo em que estaremos aqui, vou dizer-vospartes de um texto. Vou partilhar algumas memórias pessoais relacionadas com esse texto. E vou revelar-vos algumas micro-estórias sobre o protagonista e autor desse texto.

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Vou também desafiar-vos a participar no espetáculo. Masessa participação acontecerá de acordo com a estrita vontade de cada pessoa. Dou-vos a minha palavra que,quem quiser apenas assistir ao espetáculo, o poderá fazer. E que, apenas nos momentos em que eu solicitar, quem quiser, poderá participar. 

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Nesta velha capa, que me acompanha há dez anos, estão as páginas do texto “24A74 – Salgueiro Maia”. Aqui estão elas, conforme as imprimi e sublinhei. E estas palavras, apesar de arranjadas por mim, foram escritas, na sua quase totalidade, pelo próprio Fernando José Salgueiro Maia.

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Nestes dez anos, representei este texto em mais de 20 cidades, de 3 países, de 2 continentes. Ao fazê-lo, tenhovivido um conjunto de estórias de que estas páginas são testemunho. Páginas que segurei, li e reli um número de vezes e de horas que não contei: em automóveis, comboios, aviões, teatros e outros espaços feitos teatros e nos seus apropriados ou improvisados camarins, em casa e em quartos de alojamentos mais e menos confortáveis.

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Páginas que colheram as minhas impressões digitais e emotivas, ao longo de uma década.

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Páginas que hoje, aqui e agora, quem quiser, também poderá segurar e ler. Permitindo que as suas impressões digitais e emotivas sejam também colhidas por elas.

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Quando terminar o texto “24A74 – Salgueiro Maia”, poderemos partilhar as estórias e questões que quisermos. 

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Ao fazê-lo, estaremos a criar novas memórias que, ao serem cartografadas, vão fixar esse conhecimento, vencer o tempo e atingir o futuro.

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Para já, preciso de alguém que segure o texto.

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Como se chama?

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Numa cartografia, os dados são muito importantes. E talvez não exista dado mais importante que o nosso nome.

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O texto “24A74 – Salgueiro Maia” começa assim:

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1 de julho de 1944. 1º andar. Número 15. Rua de Santo Amaro. Castelo de Vide, no norte alentejano. Pouco depois da meia-noite, abro os olhos para o mundo. D. Ilda Rodrigues foi a minha parteira. Assim me contaram. Com três meses, mudamo-nos para Tomar. Os meus pais e eu. O meu pai atrás dos comboios e eu e a minha mãe atrás dele. Por dois anos. A CP muda o meu pai de novo para Castelo de Vide por um ano, em 1946. E nós, com ele. Em 47, vamos para Valongo por uns meses. Tinha 3 anos e ali fiz os primeiros amigos.

Certo dia, fomos a Lisboa. De comboio, claro. Ao Jardim Zoológico. Nunca mais me esqueci. Lembro-me que estava um dia de sol e de muito calor. Depois de sairmos do Jardim, ali perto, na Estrada das Laranjeiras, vou pela mão da minha mãe enquanto atravessamos a rua e vejo surgir do meu lado um autocarro que me pareceu gigante de tão perto que passou. Instintivamente, estaquei o passo e a minha mão separou-se da mão da minha mãe, esperando vazia no ar que o autocarro deslocou na sua passagem, enquanto os meus olhos se fecharam. Ouvi uma pancada seca. Quando abri os olhos, eu tinha quatro anos e a minha mãe e o meu pai estavam estendidos na Estrada das Laranjeiras, em Lisboa. Não se mexiam. Olhei-os nas posições estranhas em que estavam e senti um medo que nunca mais voltei a sentir. Levantei os olhos e vi, a umas dezenas de metros, um polícia de costas para mim. Comecei a correr para ele e a gritar: “Os meus pais estão mortos! Os meus pais estão mortos!” Quando o polícia me dá atenção e nos voltámos, já um mar de gente está de volta dos meus pais. Não pude voltar a olhar para eles porque o polícia me entregou aos cuidados de um padre que ali estava: o padre levou-me para um café e disse-me que os meus pais iam para o hospital e que iam ficar bem. A seguir perguntou-me se eu gostava de chocolates. E como eu disse que sim, ele ofereceu-me chocolates. À noite, estávamos em casa de familiares nossos. O meu pai já estava de volta do hospital. Entre contusões e escoriações, tinha partido uma perna. Eu já tinha perguntado pela minha mãe mais do que uma vez. Disseram-me que ainda estava no hospital. Quando tocaram à porta, vieram chamar o meu pai e disseram-lhe numa voz baixa que, mesmo assim, ouvi: “é o condutor do autocarro.” O meu pai foi até à porta apoiado nas canadianas e eu fiquei a ver da sala. O homem começou a falar com o meu pai e baixou a cabeça. Estava a chorar! – Pensei eu, que ainda não tinha visto um homem chorar. O homem dizia ao meu pai que tinha filhos e que se o meu pai fizesse queixa dele, podia ficar sem emprego para os sustentar. Quando se calou, tentando conter o choro, o meu pai disse-lhe, depois de um tempo, com uma voz que ainda hoje tenho gravada na minha cabeça: 

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Não se importa de ler? 

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“Tem muita sorte o senhor, sabe? Porque eu hoje fiquei sem mulher e o meu filho sem mãe!”

Fui então mandado para casa dos meus avós, que também trabalhavam como ferroviários, em Castelo de Vide. O meu pai voltou a casar, com a D. Maria Augusta, costureira amiga da minha mãe. Trato-a por Madrinha.

​

Obrigado.

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A minha mãe chamava-se Francisca. 

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Como nasceu o espetáculo “24A74 – Salgueiro Maia”?

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Há dez anos, em 2014, por ocasião dos 40 anos do 25 de Abril, o Rui Viana, membro da Comissão das Comemorações Populares do 25 de Abril de Viana do Castelo, desafiou-me a fazer algo a propósito da figura de Salgueiro Maia. Eu tinha curiosidade sobre Salgueiro Maia desde que reparara numa fotografia do livro de História do décimo segundo ano. Comecei a pesquisar sobre Salgueiro Maia e rapidamente descobri que existia um livro de memórias escrito por ele, chamado “Capitão de Abril: Crónicas da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril”, que tinha sido editado pelas Edições do Jornal de Edições em 1997 mas que estava esgotado desde 2004. Achei estranho que Salgueiro Maia tivesse escrito um livro de memórias e que nos 40 anos da revolução, o mesmo estivesse esgotado e nunca mais tivesse sido reeditado. Procurei em bibliotecas, falei com pessoas mais velhas. Nada. O livro não existia em lado nenhum e poucos sabiam sequer da sua existência. Felizmente pude encomendar um exemplar numa plataforma de vendas de artigos usados na internet e enquanto aguardava continuei a minha pesquisa. Quando recebi o livro, abri-o ansioso e li: 

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Dedico estas linhas àqueles que, sempre generosos, sofreram na carne e no espírito as consequências da luta pela liberdade. Desejo que sirva de aviso àqueles que, nascendo em liberdade, não lhe sentem a falta.

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Aquelas palavras, sobretudo as do segundo parágrafo, pareciam querer dizer-me algo. Afinal, nasci em 1979. Voltei a ler:

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Dedico estas linhas àqueles que, sempre generosos, sofreram na carne e no espírito as consequências da luta pela liberdade. Desejo que sirva de aviso àqueles que, nascendo em liberdade, não lhe sentem a falta.

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Li o livro de um fôlego nessa mesma noite, sem conseguir parar. Tive a sensação que não iria conseguir transformar aquelas palavras numa peça de teatro escrita por mim. Porque as palavras escritas pelo próprio eram muito mais fortes e importantes do que qualquer coisa que eu pudesse escrever por aproximação. Senti que tinha que transmitir aquelas palavras. Por isso, a quase totalidade das palavras deste texto foram escritas por Fernando José Salgueiro Maia. Eu limitei-me a selecioná-las e a escrever algumas ligações, compondo uma dramaturgia em forma de monólogo.

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Estreámos o espetáculo no dia 30 de abril de 2014, no antigo paiol de munições do Forte de Santiago da Barra, em Viana do Castelo, por se tratar de um espaço que havia pertencido ao quartel militar que ali funcionou até 1977.

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Tinha cerca de metade deste espaço, com 40 cadeiras e uma zona de cena com 3 por 3 metros, com 5 livros no chão, entre os quais eu, fardado de militar, interpretava um Salgueiro Maia que, numa imaginada primeira pessoa, partilhava as palavras com que escrevera as suas memórias. 

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Quando o espetáculo termina e se faz escuro, há aplausos, agradeço, o público levanta-se, chamo os meus colegas para virem agradecer comigo: o Porfírio Barbosa, o Adriel Filipe, a Elisabete Pinto, o Tiago Fernandes, a Ana Perfeito, a Ana Reguengo, a Raquel Amorim, fazemos uma vénia coletiva, eles saem e no fim dos aplausos aproveito para dizer que amanhã à mesma hora há espetáculo, enquanto me preparo para sair, pelo meio do público, única saída possível, já que aquele espaço não era um teatro. É neste momento que vejo um senhor na segunda fila que levantou a mão. Não era suposto. Nunca me tinha acontecido. E agora? Pensei: vou fazer de conta que não vi e saio de fininho. Mas quando dou o passo seguinte, o senhor inclina-se e acena, de forma que não posso fazer de conta que não vejo. Ganho coragem e a medo digo: “Peço desculpa mas está aqui um senhor que, parece que quer falar? Faz favor...?” Era o senhor António Basto que diz que fazia naquele mesmo dia exatamente 44 anos que ele saiu daquele mesmo forte, enquanto soldado, mobilizado para a guerra em Angola, e que queria partilhar a emoção que estava a sentir naquele momento. Está isto a acontecer e à minha esquerda outra pessoa se levanta de mão no ar. E pensei: “Estou tramado!” Pois se dei a palavra a um, este agora também vai ter que falar... Também o conheço. É o senhor Manuel Alberto Silva, diz-nos que também  está emocionado, que também foi mobilizado contra a sua vontade para a guerra, que esteve em Moçambique e que ao assistir ao espetáculo reviveu, através das memórias de Salgueiro Maia, o inferno que era então vivido pelos jovens portugueses. Logo a seguir, já sem pedir para falar, uma senhora aqui à frente levanta-se e dá-nos os parabéns, e que sim senhor, continuem a fazer isto porque é importante. No final do espetáculo do dia seguinte, quis tirar a dúvida, e perguntei: alguém quer fazer alguma pergunta ou comentário? E várias mãos se levantaram. Foi assim que, de forma imprevista, um monólogo escrito para ser transmitido por uma pessoa, em sentido único, na direção de um conjunto de pessoas, se transformou em algo que ainda não hoje não sei, nem tão-pouco estou interessado, em classificar, mais do que em viver. É qualquer coisa que acontece daqui para aí, que passa depois daí para aqui e que se transforma em algo apenas nosso.

​

Obrigado. 

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Enquanto definimos quem segura o texto a seguir, partilho convosco as palavras que Salgueiro Maia disse ao repórter Alfredo Cunha, que tirou aquela célebre fotografia, no Largo do Carmo, em Lisboa, com o Capitão Salgueiro Maia de olhar enigmático, com dois homens e um veículo blindado atrás de si. O jovem militar tinha acabado de falar com os jornalistas que lhe perguntaram que forças o apoiavam. Ao mesmo tempo, um helicóptero com uma metralhadora pesada sobrevoava o local e Salgueiro Maia não sabia ainda se pertencia aos revoltosos, se às forças do regime. Não querendo mostrar fraqueza, afirmou que tinham também a Força Aérea, referenciando o helicóptero. Para reforçar, o adjunto de Salgueiro Maia, o Alferes Carlos Beato, junto dele, querendo rematar a conversa com os jornalistas, diz: E “temos o povo!”. Ato contínuo, o Alferes dispersa os jornalistas, ficando o fotógrafo em frente do fotografado. Olham-se. E Alfredo Cunha, então com 21 anos de idade, efetua três disparos com uma das suas câmeras. Quando baixa a câmera, o Capitão Salgueiro Maia, de 29 anos de idade, três dos quais passados em combate em Moçambique e na Guiné-Bissau, diz-lhe: “Vamos lá ver se isto corre bem.”.

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Como se chama? Vou dizer daqui. Repito: numa cartografia todos os dados importam. E os nomes são muito importantes.

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Filho de uma família de ferroviários, é a situação de guerra nas colónias que me permite o acesso à Academia Militar, pois o conflito fez perder as vocações habituais, e assim a instituição foi obrigada a abrir as portas.

Iniciei os meus estudos secundários como aluno externo do Colégio Nun’Álvares em Tomar, onde existiam em permanência, como internos, cerca de trezentos alunos africanos. Este convívio salutar criou fortes amizades e alertou-me para a realidade da África então portuguesa.

Apesar de tudo isto, entro para a Academia Militar em 64, acreditando que podemos construir uma sociedade multirracial e multicontinental. Durante o meu tempo na Academia, verifico o sucessivo afastamento dos meus antigos colegas de carteira, ao ponto de, em 68, quando entro em Moçambique, constatar através de documentos de informação militar, que muitos deles tinham passado para o outro lado, justamente o lado contra o qual eu tinha jurado combater.

Os cursos que entraram na Academia Militar em 63 e 64 foram muito influenciados pela guerra, uma vez que fomos os únicos que cumprimos quatro anos letivos em apenas três, através da abolição de nove meses de férias escolares. Três anos de seguida! Feito o curso, fomos imediatamente enviados como alferes para a guerra.

Fui promovido a alferes no dia 10 de setembro de 1967 e embarquei para Moçambique a 1 de dezembro, onde cheguei no dia 17 de dezembro.

O Natal de 1967 começa mal. Tenho conhecimento que um alferes miliciano de cavalaria que eu conhecia da Escola Prática de Cavalaria, foi morto quando ia aos comandos de uma coluna de reabastecimentos por uma granada do inimigo. 

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Não se importa de ler?

 

Pouco depois do Natal, recebo outra carta, onde um camarada meu me informa que um alferes de cavalaria meu colega de curso, o melhor classificado do curso aliás, morreu no Norte de Angola numa emboscada. Estava no terreno há alguns dias. 

​

Obrigado.

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Para lhe tirarem as botas os elementos do inimigo cortaram-lhe os tornozelos à catanada. 

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Em 2015, fomos convidados para fazer duas representações num festival de teatro no Alentejo: uma em Elvas e outra em Portalegre. Na viagem entre ambas, disse ao Porfírio, técnico que me acompanhava, que tínhamos que aproveitar e fazer um desvio para ir à terra do Salgueiro Maia, Castelo de Vide. Lá fomos e chegámos a meio da manhã. Estava um calor abrasador. As ruas da vila desertas por isso mesmo. Ponho no GPS do telefone a morada: Rua de Santo Amaro, número 15. Lá fomos, debaixo de 40 graus à sombra. Quando encontramos a casa, na pequena rua, estreita e empedrada, sinto um murro no estômago: o pequeno prédio, com portas que têm por cima os números 15 e 17, está abandonado. Devoluto. Fechado. Com teias de aranha nas janelas. E se dúvidas houvesse, na janela do 1º andar, onde talvez tenha nascido o nosso homem, uma placa de uma imobiliária diz que se vende. Não há nada que diga que casa é aquela. Peço ao Porfírio para me tirar uma fotografia. Tiro-lhe também uma a ele. Olho para as fotos. Banal. Eu e ele em frente a uma porta com o número 17. Digo então para irmos ao cemitério da vila porque sabemos que está ali sepultado e a seguir seguirmos viagem, até porque estamos com o tempo contado. Entramos no cemitério, procuramos e vejo uma lápide que reconheço de uma fotografia que já tinha visto num livro. Mas quando nos aproximámos, novo soco no estômago. A campa está desmontada, com as lages, as placas e um vaso com flores já secas colocadas a um canto. Semanas antes, eu tinha lido que por necessidade de ser feita uma recolha de ADN de Salgueiro Maia, um tribunal tinha ordenado a exumação dos seus restos mortais. Não temos tempo para mais e seguimos para Portalegre. Enquanto conduzo comento com o meu colega Porfírio que não sei o que me deixou mais triste: se a campa com ar de desrespeito, se a casa de nascença completamente esquecida na vila, para venda. 

​

Obrigado.

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Enquanto definimos quem segura o texto a seguir, partilho convosco que, em Moçambique, Salgueiro Maia testemunha um acontecimento que o vai marcar para sempre.

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Depois de um confronto armado, os seus homens seguem o rasto de sangue que um guerrilheiro ferido deixaatrás de si. Com cautela, os militares caminham mais de uma hora até encontrarem o homem que, por falta de forças devido à perda de sangue, tinha desmaiado e estava prestes a morrer, depois de ter percorrido quase um quilómetro segurando as próprias vísceras. O jovem tinha levado as tropas portuguesas para o mais longe possível da sua base, ao caminhar na direção diametralmente oposta a esta, atrasando a operação dos homens de Salgueiro Maia e dando aos guerrilheiros mais tempo para fugirem. Salgueiro Maia percebe então que, ao contrário dos jovens portugueses, que eram arrastados para uma guerra na qual passavam o tempo a contar os dias para regressarem à sua terra, aqueles homens lutavam por um ideal. Lutavam pela terra deles.

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Como se chama?

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Como vos disse, numa cartografia os nomes, de tudo e de todos, são muito importantes.

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Vou dizer dessa parte que tem uma seta marcada a lápis.

​

Obrigado.

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No dia do meu desembarque em Lourenço Marques, vou ao Café Portugal e peço uma cerveja. Estou a começar a beber. Entra um típico colono e diz:

Mas já não há soldados em Portugal para virem combater? O meu filho foi chamado para a tropa e é preciso tomar conta dos pretos! Todos os presentes concordam. Comentava-se que o dever de Portugal era controlar os pretos para que os colonos pudessem viver em paz.

Ainda em Lourenço Marques, nos meus primeiros dias em Moçambique, vejo parar uma camioneta de carreira, um «machimbombo», junto a uma paragem. Todos os pretos que estão na fila esperam que os brancos que nem sequer estão na fila tomem lugar e só depois entram todos. Como é bonita a educação!  Lembro-me então dos meus camaradas de colégio que diziam ser angolanos, guineenses, moçambicanos, mas não portugueses… Será que não tinham razões para isso?

Chega o dia da minha colocação.

Como sou o mais antigo dos oficiais do meu curso que chegaram, tenho a possibilidade de escolher onde ser colocado:

Escolho ser colocado numa companhia de comandos, meu comandante!

- E porque não num esquadrão de reconhecimento, como outros oficiais?

- Porque acredito que numa companhia de comandos poderei fazer a guerra mais a sério, meu comandante!

Sigo como voluntário para as tropas especiais, para a 9ª Companhia de Comandos: “Os Fantasmas”, sedeada em Montepuez, no Norte de Moçambique, a atuar na zona de Mueda, distrito de Cabo Delgado, com uma área maior que Portugal.

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Não se importa de ler?

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Acreditava ainda que a nossa causa era justa e a nossa marginalização a nível político-mundial uma consequência da inveja, da guerra fria e de outros interesses económicos.

A verdade vai-me mostrar que estou errado.

O ambiente que se vivia em Mueda era inesquecível: a toda a hora do dia chegavam de avião feridos graves ou mortos; 

​

Obrigado.

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as amputações de membros eram diárias, as emboscadas nos itinerários de acesso e os ataques aos aquartelamentos da zona uma constante. 

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Em Beja, em 2016, fizemos uma representação para uma plateia de idosos provenientes de um lar. A dado momento, algures entre a Guiné e o regresso de Salgueiro Maia a Lisboa, ouve-se um barulho na plateia seguido de vozes que dizem que ele caiu e segurem aqui, ai meu Deus, numa agitação que não vejo totalmente por causa das luzes mas percebo que aconteceu um acidente. Hesito mas, pela primeira em 20 anos de teatro, tomo a decisão de parar um espetáculo e digo ao público que vamos interromper e peço ao Porfírio para subir a luz. Um senhor desfaleceu e caiu cadeira abaixo. Ao seu lado, um outro senhor tenta segurá-lo. As duas técnicas do lar acodem. Eu tento acalmar as senhoras na plateia, digo para darem espaço, o senhor sentiu-se mal, vamos ter calma. Passam alguns minutos que pareceram horas e o técnico da casa chega com os bombeiros que prestam os primeiros socorros e levam o senhor numa maca. O Porfírio vem ter comigo e pergunta-me: “E agora? Continuamos?”. Respondo que não e que não consigo continuar sem saber se o homem está bem, até porque e se continuamos e o senhor morre? Concordamos que o melhor, até pelo ambiente, é dizer que o espetáculo estava perto do fim e explicar o que é que faltava, e tentar terminar aquilo da melhor forma possível. É o que faço, conto que estávamos quase a chegar ao relato da marcha para o Largo do Carmo e que a seguir haveria uma conversa mas que dadas as circunstâncias passávamos já à conversa, esperando que esteja tudo bem com o senhor. O outro senhor que estava ao lado daquele que se sentiu mal, diz então: “Ele estava sempre a dizer para mim que estava a ver, que ele esteve lá, com ele. Porque ele conheceu o Salgueiro Maia na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.” Fico a sentir-me culpado e emocionado ao mesmo tempo. Estou sem jeito enquanto as pessoas comentam que umas sabiam, outras não, e o senhor continua: “Eu também estava aqui, sabe... Eu também estive nos Comandos e, em 1968, a Companhia a que eu pertencia foi render essa companhia que o senhor falou aí, “Os Fantasmas”, 9º Companhia de Comandos. Eles tinham vindo embora quando nós chegámos a Mueda, em Moçambique. Mas não sabia que o capitão deles era o Salgueiro Maia.”. Quais seriam as probabilidades?

​

Obrigado.

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Enquanto definimos quem segura o texto a seguir, conto-vos o que Salgueiro Maia disse à esposa antes de sair de casa no dia 24 de abril de 1974, “naquela noite”. Disse-lhe que se mantivesse tranquila como noutra noite qualquer mas que, para saber como evoluía a situação, esperasse pelas senhas na rádio: às 23h00, deveria tocar a senha “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho e à meia-noite, se tudo continuasse conforme planeado, tocaria a contrasenha “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso. Se isso acontecesse e mais tarde Natércia Salgueiro Maia visse sair a coluna de blindados, pois moravam ao lado do quartel, então ela saberia que aquela era a madrugada tão esperada.

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Como se chama?

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Como vos disse, numa cartografia os nomes, de tudo e de todos, são muito importantes.

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Vou dizer dessa parte que tem uma seta marcada a lápis.

​

Obrigado.

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A atividade operacional das unidades de comandos em Moçambique nesse ano de 1968 era dividida por períodos de mês e meio de operações, intervalados com cerca de 30 dias de “descanso” em Montepuez. Nesta base funcionava a Escola de Comandos. Em janeiro desse ano, antes de sair para a operação, um furriel… declarou que deixava no bar umas bebidas pagas para celebrar o seu aniversário, que ia acontecer durante o período de operações, pois sente que vai morrer antes de fazer anos:

- Estás parvo, pá! Isso é lá maneira de agoirar! Guarda mas é o dinheiro para pagar a farra ao pessoal quando voltarmos! – Ele insistiu em deixar as bebidas pagas. Na penúltima operação do período, quase em cima do seu aniversário, a sul do rio Rovuma, cruzamo-nos de repente com uma coluna inimiga. Do contacto resultam poucos disparos pois o inimigo retirou de imediato, mas uma granada de RPG2, disparada de um lança-granadas foguete acerta em cheio no peito do furriel… Morreu imediatamente. Da cintura para cima pouco mais ficou que a coluna vertebral e um braço. Tinha vinte e um anos. De volta a Montepuez, fizemos a festa de anos conforme ele tinha desejado, para brindarmos à sua memória com as bebidas que tinha pago e também para esquecer que a única condição para morremos é estarmos vivos. 

À noite, entre oficiais, vamos confessando as impressões que temos agora, no terreno, do fenómeno colonial e da situação do regime e da distância que existe entre o que nos dizem na metrópole e a realidade ultramarina. Numa dessas conversas perguntaram-me uma vez, em jeito de ilusão, se eu participaria numa Revolução caso esta acontecesse na metrópole: “Havia de ser bonito… Eu pela Avenida da Liberdade abaixo até ao Terreiro do Paço!” – respondi eu, com sono. Antes de me deitar, levo sempre a mão direita à bota onde tenho a arma e digo uma oração. Os meus colegas oficiais não percebem como é que um tipo como eu, é dado a rezas… Há tanta coisa que eu não percebo…

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Não se importa de ler?

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Sou promovido a tenente no dia 23 de novembro de 1968. Termino a comissão pouco depois e chego ao continente, vindo diretamente da zona de operações. Ao desembarcar em Lisboa quase morro de frio, a que já não estou habituado. Mas, pior do que isso, é o alheamento das pessoas ao sofrimento da guerra. Sinto que vivo noutro mundo e vejo-me num filme que não compreendo. Os automóveis e as pessoas correm nesta cidade que desde a morte da minha mãe para mim é maldita e povoada de gente maluca. Enquanto me tento habituar de novo ao ar de Lisboa, ouço o fado de Mueda, que ouvi em Moçambique e que agora, estranhamente, me ressoa na cabeça.

​

Obrigado.

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Mueda terra da guerra

Vou cantar-te neste fado

Que compus ainda há pouco

Mueda terra sagrada

De ataques à morteirada   (bis)

Que é de dar c'um tipo em louco.

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Para melhor entender o que estava a acontecer, fui matricular-me no curso de Ciências Sociais e Políticas do ISCTE, no ano letivo de 1969; mas face à luta política desencadeada pelos estudantes contra o regime, e porque fui solidário com eles, praticamente não tive aulas; em Outubro de 1970, dois meses depois de casar, recebo a notícia que fui mobilizado para segunda comissão, agora na Guiné, para onde embarco em Julho de 1971 e de onde só voltei 27 meses depois.

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Em 2016, embarcámos também para Almada, onde fizemos o espetáculo. Era um convite importante e estávamos nervosos. Eu e o Porfírio, que fazia a operação de luz e som do espetáculo, e que tem muitos mais anos de teatro que eu. Durante a montagem e ensaios do espetáculo, o Porfírio vai-me dizendo: “Ricardo, tu vê lá. Olha que aqui em Almada eles não aplaudem qualquer coisa, vê lá o que fazes...” Não consegui levar a mal os nervos dele pois sabia o quão importante também para ele era o facto de estarmos ali. Fizemos o espetáculo. No fim, toda a gente aplaude. A maior parte de pé. Olho para o Porfírio e vejo-o em lágrimas enquanto também aplaude. Segue-se a conversa e a certa altura, um senhor pergunta se a RTP2 nunca nos contactou para filmar aquela peça, porque ele entende que a mesma não só merece como seria verdadeiro serviço público emitir a peça na televisão para que um maior número de pessoas, sobretudo os jovens, a pudessem ver. Respondo que não, que também gostaríamos, claro, que seria uma honra mas não, não fomos contactados e agradeço as palavras. O senhor acrescenta: “Então, eu proponho que aqui, entre nós, possamos organizar uma recolha de assinaturas nesse sentido, começando por quem está aqui e continuando depois, para mais pessoas, para enviarmos para a televisão. Que dizem?” Fico profundamente comovido com aquilo mas agradeço e respondo que, sem prejuízo dessas e de outras iniciativas, temos ainda que ouvir quem quiser falar naquela conversa. No dia seguinte repetimos o espetáculo, à tarde, arrancando imediatamente a seguir ao mesmo de regresso a Viana. Vimos realmente contentes, eu e o Porfírio, e ansiosos, como sempre que regressamos de fazer um espetáculo que corre bem, de podermos partilhar essa experiência com os colegas da Companhia. Venho a conduzir, contente, orgulhoso do que fizemos e do que estamos a fazer com este espetáculo e com a Companhia. A meio da viagem, o Porfírio atende uma chamada. Ainda brinco com ele e digo para ver se não será a RTP a dizer-nos para voltarmos para Lisboa para filmar o espetáculo. Ele atende e diz que era a Elisabete, a minha esposa, que ligou para ele, porque eu estava a conduzir e que pede para eu ligar quando pararmos. Até à área de serviço da Mealhada, continuo a papaguear com vaidade sobre o sucesso que tivemos em Almada. Quando parámos, ligo e a minha esposa diz-me que a Tia Quinhas morreu. A Maria d’ Arrebita. Nascida em 1922, vivera a maior parte da sua vida em ditadura. Era semi-analfabeta, só sabia assinar o nome quando era preciso para algum documento. Era minha avó.

​

Obrigado. 

​

Enquanto definimos quem segura o texto a seguir, partilho convosco que já muito depois do 25 de abril de 1974, na inauguração do museu de Cavalaria que Salgueiro Maia organizou no Campo Militar de Santa Margarida, com as presenças dos então Ministro da Defesa Fernando Nogueira e do Primeiro-Ministro Aníbal Cavaco Silva, Vasco Lourenço apresentou-os e disse: Aqui está, Senhor Primeiro-Ministro, o homem que prendeu um chefe de governo. E Salgueiro Maia respondeu, enquanto apertandoa mão de Cavaco Silva: Prendi sim senhor. E prendo outro se preciso for!

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Como se chama?

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Como vos disse, numa cartografia os nomes, de tudo e de todos, são muito importantes.

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Vou dizer dessa parte que tem uma seta marcada a lápis.

​

Obrigado.

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Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir uma direção certa rumo a 60 homens deitados no chão. Para fazer cerca de 7 km demorámos quase hora e meia, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível. Depois de rotos pela vegetação e cansados de corrermos ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham um ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saberem se era verdade ou não.

Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um do homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme e o silêncio é total. Trago comigo o furriel enfermeiro e um cabo maqueiro.

Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provem-lhe da perna. Tem em cima dele várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. Começo a sentir raiva. Continuo a tirar as compressas, que foram postas a monte, sem sequer terem sido apertadas. O homem tem um estilhaço na zona da articulação do joelho. Vê-se a tíbia; toda a carne se encontra como que seca, envolvendo um buraco do tamanho de uma laranja.

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Não se importa de ler?

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Enquanto o enfermeiro lhe presta os primeiros socorros, quase duas horas depois do ferimento, dou-lhe uma palmada no ombro e digo-lhe: «Já estás safo. Vamos evacuar-te», mas acredito pouco no que estou a dizer.

O dia começa a cair. Na zona não é possível fazer descer helicópteros. Resta a solução de, na caixa dos Unimogs, levar os feridos, a saltarem como fardos a casa salto da viatura.

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Obrigado.

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Pouco depois de iniciar o regresso, o ferido na perna morre. Nunca falou nem gritou. Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida, porque em 60 homens, ninguém sabia o mais elementar em primeiros socorros: fazer um garrote. Depois de chegarmos ao destacamento, agradeço ao pessoal que saiu comigo a dedicação e digo-lhes que, mais do que os agradecimentos, a nossa consciência nos recompensará. Mando preparar a minha secção para regressar ao meu destacamento. Enquanto se forma a coluna para Bissau, dou comigo a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, com aspeto de quem não compreende nada do que aconteceu. Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com a água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e não entendo.

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Em 2017, a certa altura fomos ao Brasil, fazer duas representações do espetáculo num festival em São Paulo. Na peça, eu usava uma réplica de uma pistola num coldre. Para não termos problemas nos controlos de segurança dos aeroportos, não a levámos. E combinámos que compraríamos uma pistola de brincar numa qualquer loja. Mas acontece que no Brasil, infelizmente, pelo menos no Estado de São Paulo, toda e qualquer réplica de arma é proibida, pois pode ser usada em assaltos.

 

No dia do espetáculo, andámos seis horas à procura de qualquer coisa que se parecesse com uma pistola no maior mercado paulista, na Rua 25 de março, no meio de quinhentas mil pessoas. Por duas vezes ouvimos dizer que se fosse uma arma verdadeira ainda vá que não vá mas de brincadeira é que não... Finalmente encontrámos um bacamarte dos piratas das caraíbas, que era tão claramente falso que só por isso é que devia ser permitido. Comprámos o brinquedo e partimo-lo a meio, aproveitando a parte da coronha, que o Porfírio pintou de preto. Na conversa, estava apreensivo sobre que interesse poderiam os públicos brasileiros ter acerca do 25 de Abril. Mas nas duas conversas, a mesma pergunta emergiu. De onde apareceram os cravos na revolução portuguesa? E assim, respondendo, percebi ainda melhor a canção Tanto Mar, de Chico Buarque.

 

Obrigado.

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Enquanto definimos quem segura o texto a seguir, partilho aquilo que Salgueiro Maia disse pela rádio a Otelo Saraiva de Carvalho, a dado momento dos acontecimentos do Terreiro do Paço, no dia 25 de Abril. O Capitão diz ao Major que precisa que lhe enviem um oficial superior porque acaba de saber que o Ministro do Exército está no interior do ministério. Otelo responde: Ótimo. Vai prendê-lo. Mas Salgueiro Maia responde que não pode porque de acordo com o Regulamento de Disciplina Militar, um oficial general só pode ser detido por uma patente mínima de major e ele era só capitão. Otelo ainda protesta que estavam no meio de uma revolução e Salgueiro Maia lhe vinha com aquilo! Mas por aqui se via quem era e como fazia questão de proceder, mesmo em situações limite, o homem que dali a poucas horas teria um desempenho decisivo no Largo do Carmo.

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Como se chama?

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Como vos disse, numa cartografia os nomes, de tudo e de todos, são muito importantes.

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Vou dizer dessa parte que tem uma seta marcada a lápis.

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Ou melhor, pode ler já daí.

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Quer dizer, se eu fizesse o desafio para vir ler aqui, aceitava?

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Ora vamos lá.

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Então você é Salgueiro Maia, quando vai comunicar a uma plateia maior que esta, o que se está a passar. E tem que nos convencer a ir consigo. Sim, porque eu vou fazer de si. Força. E só uma dica: no teatro costumam dizer-nos, para ajudar a projetar a voz que lá atrás na última fila, está alguém com muitas dificuldades de audição e que tem que conseguir ouvir o que vamos dizer. 

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Depois do primeiro sinal rádio com E depois do adeus, começamos a acordar o pessoal, que se convenceu estar perante mais uma instrução nocturna. Reunidos na maior sala que a unidade tinha, ao pessoal que me estava diretamente subordinado expliquei o que estava a passar:

Meus senhores, na vida, há momentos que, pela sua importância, nos transcendem. Assim, perante o estado de negação de liberdade e de injustiça que atingimos e perante as nulas esperanças em melhores dias, há que mudar o regime, não para nos substituirmos ao regime anterior, mas para, dando liberdade e democracia, garantir ao povo a escolha do destino coletivo.

Como todos sabem, há várias modalidades de Estados: os estados liberais, os sociais-democratas, os socialistas, etc., mas nenhum pior do que o Estado a que chegámos, pelo que urge acabar com ele.

Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui! 

As oportunidades de entrar na História só surgem uma vez na vida, pelo que, quem quiser vir comigo, tem de se armar e municiar.

A adesão do meu pessoal (grupo de instrução do COM1 e do CSM2) foi total, ao ponto de ter de excluir gente, para ficar alguém nas instalações.

Ora muito bem: somos 231 homens, constituindo um grupo com um esquadrão de autometralhadoras e um esquadrão de atiradores de cavalaria. 

Só há tiros com ordem minha ou os necessários em resposta a qualquer ataque directo. 

É de evitar a todo o custo quaisquer disparos fortuitos para não originarmos confusões desnecessárias.

Vamos embora!

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Obrigado.

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Foi muito bem.

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Melhor só mesmo quando no teatro, depois de dizermos um texto, o público aplaude. Isso é mesmo fantástico.

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Obrigado.

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Obrigado pelos vossos aplausos, tão espontâneos.

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Partilho ainda convosco que, em meados da década de 1980, Salgueiro Maia deixa de comparecer nas comemorações oficiais do 25 de Abril. Já promovido a Major, a verdade é que Salgueiro Maia nunca aceitou, primeiro, os convites da Esquerda para, por exemplo, integrar o Conselho da Revolução nem, tão-pouco, os convites da Direita, para ocupar lugares políticos. Fiel ao compromisso que assumiu na Guiné, durante o ano de 1973, quando aderiu ao Movimento dos Capitães e, mais tarde, ao programa do Movimento das Forças Armadas, Salgueiro Maia manteve-se como instrutor na Escola Prática de Cavalaria de Santarém. E atuou nos momentos mais instáveis que se seguiram à Revolução, sempre articulado com o programa do MFA. Assim fez no 28 de setembro. No 11 de março. E no 25 de novembro. Pela sua postura foi prejudicado pela hierarquia militar, quer por revolucionários, quer por contrarrevolucionários. Mas nunca se queixou: “Assim me querem. Assim me terão.” – disse várias vezes à sua esposa. Apenas o deixou escrito no seu livro, para memória futura. E quando um repórter da RTP lhe pergunta porque deixou de ir às comemorações oficiais do 25 de Abril, Maia responde: “Porque os heróis vivos cheiram mal.”. 

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Em 2018, decidimos voltar a fazer o monólogo em Viana do Castelo. Mas soubemos que o antigo paiol estava ocupado, pelo que pensando onde o fazer, a certa altura, estava na Praça 9 de Abril, em Viana, onde, no centro do jardim, está um monumento aos combatentes portugueses da Grande Guerra, a primeira. Consta aí uma placa com os nomes dos naturais do Concelho de Viana do Castelo que lá morreram. Em frente, existe o edifício do antigo quartel do Batalhão de Caçadores 9, onde hoje funciona uma residência de estudantes. Estou junto ao monumento e penso que até poderia fazer ali, ao ar livre, e começo a pensar no número de cadeiras que se conseguiriam colocar. Reparo numa pequena placa que está colocada de forma discreta numa das faces do monumento. Aproximo-me e leio: Homenagem de Viana do Castelo aos seus filhos tombados nas guerras de África. Começo a ler avidamente os 41 nomes. Está lá. Isaías Alves Pereira Lopes. Soldado. Morreu em Moçambique, a 11 de março de 1974, um mês antes do 25 de Abril, com 22 anos de idade. Era filho de Maria Alves Pereira Lopes. A minha avó. A Maria d’Arrebita. A Tia Quinhas. Que quando o Isaías foi notificado da mobilização para Moçambique, foi falar com o padre e com o regedor da freguesia, eoferecer-lhes umas galinhas que ela tinha pedidoemprestadas, para tentar evitar que o Isaías, que era franzino e sofria de asma, fosse para a guerra. Infelizmente, para se livrar alguém da guerra, eram precisas muitas galinhas. Soldador acetilénico nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, o Isaías foi incorporado no exército e, ao fim de três meses de recruta, já estava no teatro de operações. E, ao fim de outros três meses, já estava morto. Teria chegado a aprender como se fazia um garrote?

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Em testamento, Salgueiro Maia manifestou a vontade de ser sepultado na sua terra natal, Castelo de Vide. Em campa rasa. E utilizando o caixão mais barato do mercado. O seu testamento dizia: “Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir.”. Quando já sabia que tinha pouco tempo de vida, aos 47 anos de idade, disse aos seus amigos mais próximos que gostava que entoassem “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, de quem ele era grande admirador, no momento em que a sua urna descesse à terra. Perante a emoção provocada naqueles que o ouviram, o Maia, como era tratado pelos amigos, atirou: “Não fiquem assim, pá! É para aqueles que vão querer estar no meu funeral só para ficarem bem no retrato, ao menos, terem que cantar a Grândola!”.

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O texto “24A74 – Salgueiro Maia” termina assim:

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A marcha para o Carmo foi extraordinária pelo apoio popular que agregou, o que contribuiu bastante para que o Carmo perdesse a vontade de resistir. Nunca tinha visto o povo a manifestar-se assim. No Carmo, ao chegar, houve desde senhoras a abrir portas e janelas para colocar homens nas posições dominantes sobre o quartel, até ao simples espetador que enrouquecia a cantar o hino nacional. O ambiente que lá se viveu não tem descrição, pois foi de tal maneira belo que depois dele nada de mais digno pode acontecer na vida de uma pessoa. 

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E agora, tal como sempre desde há dez anos, podem colocar alguma questão ou fazer algum comentário. 

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Peço agora que me digam qual a palavra ou quais as palavras com que fecharemos este momento e que gostariam que pudesse abrir a próxima representação deste espetáculo.

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Estas palavras, assim como uma descrição do espetáculo que juntos fizemos aqui hoje, vai ser publicada num site chamado cartografia.online, no qual está publicada a cartografia com as memórias de cada representação deste espetáculo, assim como o texto completo deste monólogo. Assim, esta cartografia de um monólogo vai fixar a memória de que um dia estivemos aqui. Juntos. E, vencendo o tempo, ela vai possibilitar a quem vier depois de nós, aceder às memórias que hoje, aqui, registámos.

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Entretanto, esta estória de um espetáculo e das pessoas que o fizeram e viram, e das pessoas que o continuam a fazer e a ver, vai continuar.

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Até um momento e um lugar que ainda não é possível determinar.

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Obrigado pela vossa presença.

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Até sempre.

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(Chave de transmissão cartográfica)

 

SEM FIM

 

Viana do Castelo, fevereiro, março, abril de 2024

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