No dia 12 de agosto, pelas 21h30, no Teatro do Montemuro, na aldeia de Campo Benfeito, no concelho de Castro Daire, distrito de Viseu, integrado na programação da 27ª edição do Festival Altitudes, organizado pelo Teatro Regional da Serra do Montemuro, teve lugar a 25ª representação do espetáculo, perante uma plateia de 160 lugares completamente cheia, inclusive, com algumas crianças a partir dos 10 anos. O intérprete deseja relevar que imediatamente antes do início do espetáculo, enquanto aguardava o sinal de entrada que seria dado pela passagem do Abel Duarte, insigne ator e membro da companhia anfitriã, duas crianças surpreenderam o intérprete enquanto aguardava numa zona comum. A mesma situa-se por baixo da bancada e tem uma passagem para a zona do bar, onde fica também a casa de banho pública. Quando estava num canto do corredor para não ser visto pelo público, o Rodrigo Macedo e o Lourenço Costa, ambos de 10 anos de idade, surgiram à frente do intérprete. O Rodrigo afirmou: - “Nós não sabemos o caminho para a casa de banho!” – Ao que o intérprete, apenas fez sinal com a mão, indicando que era ali mesmo ao lado. O Rodrigo respondeu: “Ah, ok!” – Mas fez então uma pausa, reparando na postura silenciosa do intérprete. E com um irreprimível e arregalado olhar de curiosidade perguntou de seguida, apontando para o intérprete: - “É ‘os atores’?” – O intérprete piscou o olho e voltou a apontar na direção da casa de banho, enquanto os dois miúdos passaram para lá, trancando a porta. Passados dois minutos, ainda o público continuava a entrar no teatro, saíram e esgueiraram-se por onde tinham aparecido. Olhando para trás, o Rodrigo disse: - “Obrigado!” – E o intérprete voltou a piscar o olho em silêncio, levando o dedo aos lábios em sinal de silêncio e como que tentando estabelecer um pacto com as duas crianças, para que não revelassem que ele estava ali, ou que o tinham visto antes do início do espetáculo – medos que se transformam em pensamentos e ações do ridículo. Ambas as crianças repetiram o gesto, como se tivessem compreendido e aceitado o pacto. Um par de minutos depois, tal como estava combinado, o Abel apareceu e desejou a “Muita Merda!” da praxe ao intérprete. Mas fê-lo de forma presente, ali, naquele momento, e agradeceu ao intérprete por estar ali e pelo espetáculo que ia fazer, o que este pôde retribuir com um sincero cumprimento também. Foi um momento “a sério”. Como um abraço sincero, que é diferente de um que é de circunstância. Como só acontece com pessoas que são gente. O intérprete saiu então de debaixo da bancada, dirigiu-se ao proscénio e começou o espetáculo. Leram: o Rodrigo Macedo (sim, a criança que procurava a casa de banho!), que assim que o intérprete disse que precisava de alguém para segurar o texto, levantou a mão e exclamou: - “Eu!” – a plateia irrompeu numa gargalhada. Depois de perceber que o Rodrigo, sentado entre duas crianças, umas das quais era a que o tinha acompanhado à casa de banho, estava também junto à sua mãe, o intérprete passou-lhe a velha capa com as páginas e iniciou o texto “24A74 – Salgueiro Maia”. Seguiram-se na leitura, a Rita Bernardes, o Lourenço Costa (aquele que, tal como o Rodrigo, tinha ido à casa de banho antes do espetáculo; também de 10 anos de idade), a Ana Silveira, o João Silva, a Ângela Morgado, que gentilmente aceitou o desafio do intérprete para ir ler as palavras de Salgueiro Maia a cena, apesar de ter sussurrado que teria dificuldades por não ter trazido os óculos. Na parte do espetáculo dedicado às questões e comentários do público, Carolina Machado perguntou se já tinham sido convidados pela RTP para gravar o espetáculo e o intérprete respondeu negativamente e acrescentou que também não tinham feito nada especificamente nesse sentido pois gostavam de fazer o trabalho a que se propõem e de ser descobertos. Carolina disse que tinha uma segunda pergunta, que era - “O que tenho que fazer para levar este espetáculo à minha escola?”. O intérprete perguntou qual escola e a professora Carolina respondeu “Vila do Conde”, tendo o intérprete acrescentado que nesse caso, seria ainda mais fácil, pois Vila do Conde até fica em caminho no regresso a Viana do Castelo. Disse ainda que o espetáculo é indicado para públicos do Ensino Secundário e que estreou em abril último, tendo percorrido justamente todas as escolas daquele ciclo de ensino em Viana do Castelo, o que foi desafiante mas um enorme gosto, sendo que continuará em digressão até, pelo menos, julho de 2025. Seguiu-se Eduardo Correia, também ilustre ator da casa, que perguntou ao intérprete como foi o processo de criação até atingir aquele despojamento: o deixar a farda do monólogo original, estar ali sem mais nada que o texto... O intérprete respondeu que decorreu do processo, que, dez anos depois da estreia do monólogo original, não queria voltar ao mesmo ponto em termos artísticos e, por outro lado, queria desafiar-se como ator e também pesquisar sobre o tema da memória, no caso, sobre as estórias colecionadas durante a digressão do espetáculo de 2014, das quais sempre sentiu pena por não saber quem foram alguns dos seus inesquecíveis, mas anónimos protagonistas. Com a sorte de contar com a ajuda de vários colegas durante a criação, partiu-se de uma ideia de teatro documental e, ao longo do processo, foram depurando a proposta, que seguiu rumo à essencialidade que é patente no espetáculo. Seguiu-se o Lourenço Costa, de 10 anos, que perguntou se já tínhamos sido contactados pela TVI para gravar o espetáculo, originando nova gargalhada geral. O intérprete respondeu que não e partilhou o episódio passado antes do início do espetáculo com o Rodrigo e o Lourenço, tendo sido identificado neste momento um terceiro rapaz, gémeo de Lourenço, chamado Leonardo. Seguiu-se Maria João Tavares, que felicitou a companhia pelo espetáculo, que lhe despertou memórias que a atravessaram, e disse que o mesmo devia ir, se possível, a todas as escolas secundárias do país e até a algumas universidades. Disse que conheceu três fases distintas de Portugal: que em criança teve de ir para África com seus tios e que partiram num navio de Alcântara. Contou como nunca mais se esqueceu da imagem de centenas de mulheres, muitas delas vindas de outras partes do país, no cais, a chorar, acenando com lenços para centenas de rapazes que a bordo do navio acenavam igualmente. Relembra que depois, alguns anos mais tarde, regressou a Lisboa vinda de Cabo Verde e de como a cidade e o país lhe pareceram cinzentos e pesados, um país onde não se falava e se sofria em silêncio, por exemplo, aguardando notícias de amigos que estavam em África e que enviavam aerogramas. Lembra-se da “primavera marcelista” durante a sua adolescência e finalmente do 25 de Abril e da memória de um tempo de esperança e liberdade. Hugo Santos disse então que, tendo nascido 1 mês e 1 dia depois do 25 de Abril já teve a felicidade de ouvir contar muitas histórias sobre a revolução portuguesa e sublinha que daqui a outros 50 anos a história do 25 de Abril já vai ser contada sob a forma de uma epopeia e, por isso, é importante garantir e estar atento às narrativas que contam essa estória e como e com que propósito o fazem. Seguiu-se Germano Rodrigo Duarte, que partilhou que esteve em quase todas as colónias, à exceção de Timor. Disse que conheceu Salgueiro Maia e corroborou o texto do espetáculo como sendo fiel à realidade e que nos anos a que este se reporta, mais perto da década de setenta, já se falava mais sobre a realidade da guerra colonial e dos seus mortos, que já eram impossível esconder, ao contrário do que aconteceu durante os primeiros anos, em que o regime tentava abafar as piores notícias e em que, muitos morreram ignorados. Disse ainda que depois de ter percorrido quase todas as colónias, já em Portugal, viveu o 25 de Abril intensamente e que esses momentos estão bem retratados no espetáculo. A seguir, Esmeralda Guerreiro quis lembrar que se falou no espetáculo de um chefe de governo, que foi responsável por negar uma pensão à família de Salgueiro Maia, tendo depois condecorado antigos agentes da PIDE. O intérprete disse que quis deixar esse episódio fora do espetáculo mas que agradecia o facto da espetadora o ter mencionado e continuou, detalhando o episódio verídico desse antigo Primeiro-Ministro e de como os ex-PIDE por este condecorados receberam uma pensão por “altos serviços prestados à Pátria” durante 8 anos até o Presidente Mário Soares a ter revogado e ter atribuído uma condecoração a título póstumo a Salgueiro Maia, acrescentando que, de resto, o atual Presidente da República, no seu primeiro mandato, atribuiu também uma condecoração a Salgueiro Maia, num gesto que assumiu então ser de reparação histórica. De seguida, Rui Santiago disse que, para além da perspetiva historicista, importa também atentar nas palavras da dedicatória de Salgueiro Maia no seu livro de memórias em que ele menciona a palavra “aviso”, ou seja, como não devemos dar a vitória por garantida e que gostaria que este espetáculo servisse também para que aqueles que vierem depois de nós tenham também essa consciência. O intérprete concordou e mencionou que, caprichosamente, nessa tarde se tinha enganado a dizer essa passagem e que a sua colega o corrigiu, reparando precisamente na palavra “aviso”, e mencionando que essa era mais forte e simbólica que a palavra “exemplo” que este tinha dito por engano (a frase escrita por Salgueiro Maia é: “Desejo que sirva de aviso [e não de exemplo] àqueles que nascendo em liberdade, não lhe sentem a falta). José Santos disse ter conhecido Salgueiro Maia durante a adolescência no tempo de liceu, em que partilhavam autocarro entre Pombal e Leiria. Foi então composta a chave cartográfica de transmissão que, devido a ter sido, porventura, a mais participada de sempre, levou o intérprete a pedir a ajuda de Elisabete Pinto, que estava a operar o espetáculo, para que apontasse os contributos de cada pessoa, para que ele pudesse ler, pois reconheceu-se incapaz de memorizar e reproduzir naquele momento todas as palavras e expressões que os diversos braços no ar indicavam fazer questão que fossem incluídos. Assim, depois de composta e assente, a chave foi passada numa página de papel que o intérprete leu, depois de se desculpar por não conseguir decorar tudo naquele momento, mas garantindo que no início do próximo espetáculo, dirá de cor a chave cartográfica de transmissão que então leu, encerrando o espetáculo:
Maria João Tavares – Esperança;
Leonardo Costa (10 anos de idade) – Liberdade;
Lourenço Costa (10 anos de idade) – Paz;
Henrique Costa – Sacrifício;
João Silva – Coragem;
Germano Rodrigo Duarte – Honestidade;
Maria Rosa Gonçalves – Força;
Nuno Santos – Aviso;
Ana Silva – Memória;
Guilherme Serra – Resistência;
Sofia de Oliveira – Amor;
Carolina Morgado – Nunca esquecer;
Jorge Botelho – Aviso;
Rodrigo Macedo (10 anos de idade) – Honra.
Quando o intérprete ia ler a última palavra da chave, olhou para o vivíssimo Rodrigo e, antes de dizer a palavra que ele fez questão de incluir nos contributos para a chave, como se fosse algo que ele não pudesse deixar de conseguir, o intérprete atirou um festivo beijo na direção da criança, exclamou “Honra!” e saiu. O espetáculo terminou pelas 23h30, tendo sido um dos, se não o mais longo de todos até à data. O público aplaudiu de pé e o intérprete voltou por duas vezes a cena, para agradecer. Após o espetáculo, várias pessoas quiseram falar com o intérprete no exterior do teatro. Uma senhora, cujo nome o intérprete lamenta não ter fixado, disse ter sentido muita vontade de falar durante a peça mas disse que não o fez porque estava muito emocionada. Disse ainda que ia escrever uma carta, ainda não sabia a quem, a pedir que o espetáculo fosse a todas as escolas do país. À boleia de confessar ter já uma certa idade disse que no 25 de Abril estava em Lisboa e que passou três dias seguidos nas ruas a viver aquilo sem ir a casa e que foram os dias mais bonitos da sua vida. Finalmente, o intérprete deseja registar uma nota pessoal: Pelo facto de estar oficialmente em férias e de ter familiares que o acompanham em férias, assim como outros que são naturais, residem e/ou passam férias no Concelho de Castro Daire, estiveram também presentes a assistir: a Helena Pinto, o Paulo Sequeira, o Mário Almeida, a Leonor Coelho Almeida, a Nathalie Almeida, o Eduardo Pereira. Foi um gosto especial também ter tido a oportunidade de representar para eles, alguns dos quais viram o intérprete em cena pela primeira vez. Por “arrastamento filial”, esteve também a assistir a Alice Pinto Simões que nos seus 11 anos só quis passar despercebida. Aliás, nenhum deles quis falar durante o espetáculo. Mas, felizmente, esta é a estória de um espetáculo e das pessoas que o fizeram e viram e das pessoas que o continuam a fazer e a ver. Uma cartografia. E... numa cartografia, os dados, os nomes, de tudo e de todos, são muito importantes, por isso... Aqui ficam. E fica também um “obrigado” a toda a Equipa do Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana por tudo e também especificamente por este espetáculo, num “até setembro” para mais teatro, sempre decorado e apertado contra o peito, pronto para o partilharmos com todas as pessoas que o virem.
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